Depoimento apresentado no Seminário Linguagem e Linguagens: a fala, a escrita, a imagem pelo professor João Alexandre Barbosa (Professor titular de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo-USP).
Vou começar contando uma história que é ilustrativa daquilo que quero dizer. Há muito tempo, uma aluna, numa aula de Teoria Literária, disse-me que estava muito interessada em ler um livro que fosse importante, mas que obedecesse a algumas condições: antes de mais nada, tinha de ser "fininho". E exatamente na ocasião em que ela falava isso, a editora Civilização Brasileira acabava de publicar uma coleção, que infelizmente já desapareceu, chamada Biblioteca Universal Popular, composta de livrinhos pequenos, fininhos. A Civilização Brasileira acabara de publicar uma tradução de A Metamorfose e eu disse: "Pronto, está aqui o livro que você me pediu; é A Metamorfose, de Franz KAFKA, um livro fundamental na história da literatura, e é fininho.".
Vou começar contando uma história que é ilustrativa daquilo que quero dizer. Há muito tempo, uma aluna, numa aula de Teoria Literária, disse-me que estava muito interessada em ler um livro que fosse importante, mas que obedecesse a algumas condições: antes de mais nada, tinha de ser "fininho". E exatamente na ocasião em que ela falava isso, a editora Civilização Brasileira acabava de publicar uma coleção, que infelizmente já desapareceu, chamada Biblioteca Universal Popular, composta de livrinhos pequenos, fininhos. A Civilização Brasileira acabara de publicar uma tradução de A Metamorfose e eu disse: "Pronto, está aqui o livro que você me pediu; é A Metamorfose, de Franz KAFKA, um livro fundamental na história da literatura, e é fininho.".
Depois de uns quinze
dias, ela retornou e disse-me o seguinte: "Professor, comprei o livro que
o senhor indicou, li e detestei. Detestei porque, logo no início dele, se lê
que personagem se transforma num inseto e isso, professor, não é verdade, isso
não pode acontecer."
"É verdade"
– disse-lhe. "Eu acho que isso, do ponto de vista ontológico, não pode
acontecer; a natureza do homem é diferente da do inseto. E, do ponto de vista
da evolução biológica, isso não pode acontecer, pelo menos até o momento. Mas
isso pode acontecer do ponto de vista da criação literária. E aí expliquei a
ela o seguinte: "Você perdeu uma grande oportunidade de atravessar essa dificuldade
inicial e ir um pouco mais adiante, vendo como esse escritor, Franz KAFKA, tira
partido dessa transformação inicial, como a coisa se torna complexa. Isso ou se
transforma ou vai-se diversificando em várias metáforas, várias imagens e acaba
agarrando a experiência do leitor de uma ou de outra maneira. Quer dizer, você
perdeu uma grande chance de estar atenta a essa complexidade." Depois
disso, não sei o que ela fez, se retornou ou não ao livro do KAFKA.
Mas essa história
inicial serve para dizer que, na leitura – e essa é a primeira reflexão que quero
fazer – de qualquer obra literária, de qualquer texto que tenha por base a
intensificação de valores – daquilo que chamamos de uma ou outra maneira
aproximada de valores literários – existe sempre, como dizia o grande crítico
canadense recentemente falecido, Northrop FRYE, a necessidade de conhecimento
de duas linguagens. Segundo ele, "Na leitura de qualquer poema é preciso
conhecer duas linguagens: a língua em que o poeta está escrevendo e a linguagem
da própria poesia."
Acho extraordinária essa frase de Northrop
FRYE porque isso sugere que, ao ler qualquer poema, eu tenho de ler nele um
pouco da história da linguagem na qual ele se inscreve. Mas não posso chegar a
isso sem passar pelo conhecimento da linguagem ou da língua em que o poema está
escrito, que vai levantar determinados problemas, sobretudo os de ordem semântica,
que qualquer bom dicionário ajuda a resolver. Entretanto, mesmo depois de
passar por esses problemas, vou-me defrontar com outros muito graves, que são
aqueles referentes à própria história daquela linguagem.
É difícil
"ler", apreciar um quadro de MONDRIAN, por exemplo, se não se conhece
um pouco de que modo este pintor se insere na tradição da pintura holandesa.
Isto porque os primeiros quadros de MONDRIAN são absolutamente figurativos e
dialogam com a tradição da pintura holandesa. Ele não chegou ao abstrato sem
antes passar por um percurso enorme, que foi o aprendizado da linguagem de um
determinado tipo de arte – uma arte bastante localizada, a arte visual
holandesa. Esse é um problema que queria levantar inicialmente, porque ele
afasta um pouco a idéia de que tudo é muito fácil na apreciação da literatura
ou das outras artes. É o laissez-faire que muitos arte-educadores defenderam
durante tanto tempo. Não, é preciso também conhecer isso; é preciso ter um
estoque mínimo, um repertório mínimo, para que seja possível identificar a
importância de uma obra ou de um texto literário. Mesmo porque, sabemos que
toda arte é condenada à história.
Já que mencionei
Northrop FRYE, vou, patrioticamente, citar um autor da nossa língua, Fernando
PESSOA, que, em 1916, escrevendo sobre a modernidade da literatura, dizia mais
ou menos assim: "No mais pequeno poema de um poeta deve haver sempre
alguma coisa por onde se note que existiu Homero.". O que significa isso?
Significa a condenação do poeta a uma determinada tradição de linguagem de
trabalho. Isso não quer dizer que ele, a todo momento, fique atento à
existência de Homero; significa, sim, que, trabalhando aquela linguagem, ele,
de qualquer modo, ainda que longinquamente, estará ecoando aquilo que fez um
grande poeta do passado, porque existem elementos arcaicos, em qualquer
criação, que permanecem, apesar de todas as inovações que devem existir,
evidentemente.
Desse modo, o
problema da linguagem literária se põe inicialmente, em meu entender, nesse pórtico,
com essa duplicidade e tendo em vista essa historicidade radical.
Há outro grande poeta e também crítico – T. S.
ELIOT –, um dos maiores da língua inglesa deste século. Ele escreveu, em 1917,
um ensaio intitulado A Tradição e o
Talento Individual, que é contemporâneo do pequeno trecho já citado de
Fernando PESSOA. Neste ensaio, ELIOT diz que o escritor não é escritor, se
depois de 25 anos não sentir em seus ossos o peso de uma tradição. Ele afirma
ainda que qualquer grande obra, quando surge, que realmente interessa e marca
uma literatura, modifica a tradição. Essa é uma frase extraordinária que foi
apanhada por um dos maiores inventores de todos os tempos, na literatura, o
argentino Jorge Luís BORGES. Este escritor tem um pequeno trecho, denominado Kafka
e seus Precursores, que recomendo como texto de prazer.
O texto de BORGES
aponta para o seguinte: o fato de KAFKA ter existido criou precursores em relação
a ele. Portanto, podemos imaginar o seguinte: KAFKA criou um seu precursor brasileiro:
Machado de ASSIS. Basta ler alguns contos de MACHADO – por exemplo, O Alienista
– para sentirmos isto.
Esse é um ponto
primeiro e fundamental de reflexão: ao se realizar, uma obra realiza igualmente
todas as potencialidades da linguagem – seja ela literária, pictórica ou de
qualquer outro tipo. Ela modifica a tradição anterior a ela, reordena essa
tradição. A este aspecto agrego algo que me vem preocupando já há algum tempo,
ao qual dei expressão no meu livro A Leitura do Intervalo.
Trata-se do que venho chamando de intervalo da leitura. Meu pensamento acerca dele
é o seguinte: a literatura nunca é apenas literatura; o que lemos como
literatura é sempre mais – é História, Psicologia, Sociologia. Há sempre mais
que literatura na literatura. No entanto, esses elementos ou níveis de
representação da realidade são dados na literatura pela literatura, pela
eficácia da linguagem literária. Então, entre esses níveis de representação da realidade
e sua textualização, seu aparecimento enquanto literatura, há um intervalo –
mas é um intervalo, como na música, muito pequeno e que é preciso ser muito
rápido para perceber.
Ora, o que imagino, e
venho perseguindo enquanto matéria de reflexão teórica, é que. exatamente pela
intensificação desses espaços de intervalo as obras permanecem. E aí toco na questão
da perenidade das obras, que é um problema central. Por que as obras
permanecem? Por que se lê e relê Dom Quixote? Por que se lê e relê
DOSTOIÉVSKI? Para facilitar as coisas, dizemos que esses autores são clássicos.
Um grande romancista
italiano contemporâneo, um dos maiores deste século, que infelizmente faleceu
muito jovem, ítalo CALVINO, escrevendo sobre os clássicos, dizia algo que acho interessante
e engraçado: "Se se perguntar a uma pessoa se já leu tal ou qual clássico,
ela raramente diz que não leu ou raramente diz que leu. Dirá sempre: estou
relendo.". E CALVINO afirma que o
problema é de duas pontas. Num primeiro nível, na aparência, significa que a pessoa
tem vergonha de dizer que não leu VIRGÍLIO ou HOMERO; num segundo, há razão para
dizer que está relendo, porque não se lêem mais esses autores – eles são, sim,
relidos, mesmo que não tenham sido lidos. E isso é que acho extraordinário.
Isto é, autores como HOMERO, VIRGÍLIO passaram de tal modo a participar da
corrente sangüínea da literatura que não são mais lidos, eles são relidos. Isto
porque acabamos lendo-os em outros textos, em outros autores. E CALVINO dá um
exemplo muito caseiro, italiano:
"Eu, quando criança, já tinha lido Pinóquio;
já tinha lido
Pinóquio mesmo quando não tinha lido, porque o
Pinóquio fazia de tal maneira parte da cultura
italiana
da minha casa, das histórias, das morais, das
representações sociais, das representações
psicológicas, que eu certamente já tinha lido
Pinóquio
sem ter lido. E, quando li, tive uma surpresa: ele
era
mais e menos daquilo que eu imaginava."
É isso que tenho procurado chamar de
leitura intervalar, isto é, leitura desses intervalos existentes numa obra. Uso
para isso a expressão francesa an abime – leituras em abismo, leituras
que dão arrepio – porque ela diz tudo. E nisso toco em outro ponto abordado
aqui, a relação do leitor com o texto literário. Quando o texto realmente
interessa, tal relação nunca é tranqüila, mas sim tensa, de medo até, ou mesmo
de terror – uma relação, de qualquer forma, inquietante. As obras de arte – e
isto vale para todas elas – que não provocarem a inquietação são obras que não
têm interesse. E uma coisa bastante interessante: aquilo que chamamos obras
perenes, que permanecem, muitas vezes não permanecem pelos seus significados,
mas porque nós, seus pósteros, podemos descobrir nelas relações de
significantes que levam a outros significados. Por isso diferentes gerações
lêem tais obras.
Hoje, quando se fala
em intertextualidade, um autor contemporâneo mais ou menos informado das várias
teorias literárias ou então um leitor podem descobrir que ela já estava
presente em Dom Quixote, em CERVANTES. Portanto, eles podem fazer
o teste com suas próprias experiências culturais, porque até mesmo o leitor
está condenado culturalmente, ele não é uma página em branco.
Como alguém já disse,
é muito estranho que a Escola, o ensino pense o aluno como uma página em branco
e não faça nada para aproveitar a alfabetização cultural que ele traz, só
porque esta é diferente – não uma alfabetização de letrinhas, mas uma
alfabetização cultural, oferecida, por exemplo, pela televisão. Quer dizer, o
leitor, de certa maneira, também está condenado à cultura e, portanto, lê nos
textos do passado elementos que a sua experiência cultural foi capaz de lhe oferecer.
Dentro disso tudo,
qual é a singularidade da literatura, da criação literária? É uma coisa que tem
de interessar a todo mundo. Gosto muito de perguntas simples, pois, na verdade,
são as mais complexas. As vezes, depois de o professor fazer uma análise muito
bonitinha de um poema ou de um conto, o aluno pergunta: "e o autor sabia
de tudo isso?". Ou então: "Mas essa era a casa do seu avó?". E
por isso que creio que uma das singularidades da literatura é a criação de
espaços ficcionais ou, dizendo de uma outra maneira, da fìccionalidade.
Ficcionalidade não significa mentira. Resumidamente, ela quer dizer que aquilo
que você está lendo é e não é o que você está lendo. Para dar um exemplo dessa
fìccionalidade, há um texto genial do Jorge Luís BORGES, presente no ensaio Magias
Parciais do Quixote, que diz tudo. Nele, BORGES diz o seguinte:
"Por que é que nos
inquieta que o mapa esteja incluído no
mapa? E as mil e uma noites
num livro das mil e uma noites?
Por que é que nos inquieta que
Dom Quixote seja o leitor do
Quixote? Dom Quixote no
Quixote lê o Quixote. E Hamlet
espectador de Hamlet? Creio
ter dado com a razão. Tais
inversões sugerem que se os
personagens de uma ficção
podem ser leitores ou
espectadores, nós, seus leitores ou
espectadores, podemos ser
fictícios. ".
Quer dizer, sem essa
idéia da ficcionalidade, de que o que se está lendo ou vendo ocupa um espaço ficcional,
é impossível a percepção de toda a complexidade, bem como do lúdico da
literatura e da arte.
E a esse tipo de problema
evidentemente se associa de imediato um outro, que é fundamental para o gozo e
o entendimento da linguagem literária – o problema da intencionalidade na
literatura. Trata-se daquilo que disse acerca daquela pergunta do aluno:
"e o autor sabia de tudo isso?". E aí temos de distinguir, de uma
maneira muito clara, duas questões: a intencionalidade do autor, que muitas
vezes fica aquém ou além do texto, e a intencionalidade do texto. Quando me
refiro à intencionalidade do autor – que, às vezes, fica aquém do texto –,
quero dizer que ele, qualquer que tenha sido o texto que produziu, muitas vezes
ou freqüentemente se espanta com o que escreveu. Este espanto ocorre porque os
móveis da escritura, aquilo que entra na composição, não são sempre
conscientes. Às vezes, trata-se de elementos inconscientes que entram nessa
escritura; elementos, muitas vezes, acidentais.
Vou contar uma
história a respeito de Graciliano RAMOS. Em seu romance Angústia, de
forte influência dostoievskiana, há uma passagem em que o personagem, febril,
delira, e aí aparecem nomes de pessoas, ruas – sobretudo de Maceió, Alagoas –,
botecos, lojas, tudo condensado de forma estupenda. De repente, no entanto,
desponta o nome de uma cachaça. Através de um amigo íntimo de GRACILIANO, soube
que aquele nome era da marca de uma cachaça que o escritor alagoano bebia
enquanto escrevia o episódio do delírio. "( ...) num momento, eu levantei
a cabeça e vi o nome da cachaça e pus lá." – disse GRACILIANO. Quer dizer,
são elementos acidentais que podem entrar na composição como elementos
inconscientes.
Há ainda o caso de Paul VALÉRY, poeta e
crítico francês. Ele era, muitas vezes, molestado por pessoas que lhe
perguntavam: "O que é que você quis dizer nesse poema?". Isto por ele
ser um poeta extremamente delicado, difícil, abstrato. Um dia, no entanto,
VALÉRY escreveu o seguinte sobre um dos seus próprios poemas: "Quando me
perguntam o que eu quis dizer neste ou naquele poema, eu respondo que eu não
quis dizer, eu quis fazer, e foi a intenção de fazer que quis o que eu
disse.". Ou seja, foi o próprio processo de composição que acabou
determinando a obra e não o eu do autor antes do trabalho de composição.
Portanto, é possível perceber de que modo há uma intencionalidade do texto, do
trabalho da linguagem, que não é propriamente aquilo que está a todo momento ao
nível de consciência daquele que escreve. Se assim fosse, não existiriam os
psicanalistas nem os advogados. Ambos trabalham com interpretações de texto, restos
da linguagem, aquilo que foi dito para além do que se quis dizer ou aquilo que
não foi dito com relação ao que se disse. O psiquiatra pede que você diga, para
depois dizer o que você não disse. Ou o contrário. Você diz demais, para
esconder outras coisas que não quer dizer.
Esses são elementos de reflexão importantes,
porque tratam da nossa condição de leitores. Com relação à questão do trabalho
solitário e solidário da literatura, quero lembrar algo que acho muito
interessante. Há um conto de Albert CAMUS, um escritor infelizmente um pouquinho
fora de moda, que se passa em Iguape, uma praia de São Paulo. Numa cabana de pescador,
lê-se na porta a seguinte frase posta pelo personagem, que é um artista:
"solitaire" – ou "solidaire", porque, como diz o escritor,
não se percebia bem se era um "t" ou um "d". Este é um
problema fundamental em CAMUS e em toda a reflexão que ele faz sobre a chamada
literatura engajada. Ao ganhar o
prêmio Nobel de Literatura, ele disse:
"O grande drama, a grande
tensão do escritor é porque
ele sabe que está na arena,
mas tem que sair dela para
voltar novamente a ela.".
Ora, esse tipo de
trabalho, o mesmo da construção literária, foi descrito aqui muito bem. Trata-se
de transformar em texto legível aquilo que é disjecta membra, fragmentos da
realidade. Quando realiza a obra, o escritor transforma a linguagem literária,
capaz de condensar essa fragmentação e fazer de tal forma que possamos ler como
se fosse algo inteiriço aquilo que a realidade nos dá como estilhaços. Daí o
hábito da anotação, que não é senão o mapa dos estilhaços.
Ao comentar sobre sua caderneta de anotações,
Ignácio de LOYOLA fez-me lembrar de umahistória envolvendo Paul VALÉRY, mais
uma vez, e o físico EINSTEIN, que eram muito amigos. VALÉRY escreveu os seus
cahiers de 1894 a 1945. Todos os dias, ele acordava às quatro e meia da manhã e
os escrevia. O resultado foram 29 volumes de anotações as mais variadas, não
apenas psicológicas, mas de leituras, reflexões, inquietações. E tal hábito VALÉRY
conservou até o fim da vida. Certa vez; perguntou a EINSTEIN: "Professor
Einstein, você também, como eu, tem a mania de fazer anotações?". EINSTEIN
achou engraçada a pergunta e disse-lhe: "Eu não tenho, não tenho essa
mania. Mas, na verdade, só tive uma ou duas idéias em toda a minha vida."
O escritor, entretanto, vive, exatamente como
foi descrito aqui, desta vontade de percepção e recriação dos elementos quase
que indecifráveis que a realidade lhe oferece.
Uma das funções
educativas da arte é da literatura é tornar esses conjuntos legíveis – e, evidentemente,
também distingui-los, discriminá-los, avaliá-los. Tive uma experiência certa vez,
quando fazia crítica de jornal semanal. Recebia cartas muito engraçadas de
leitores, às vezes muito sérias. Um deles, seminarista, escreveu-me dizendo que
gostava muito dos meus artigos, aprendia muito com eles – fazia, enfim, uma
série de elogios –, e terminava dizendo: "( ...) entretanto, só tenho a
lamentar uma coisa (...) o senhor nunca escreveu sobre três autores pelos quais
eu sou extraordinariamente apaixonado: KAFKA, PITIGRILI e Cassandra RIOS".
Achei extraordinário, sobretudo pensando naquela aluna referida. Sempre
lamentei, depois, não ter escrito um artigo com o título Kafka, Pitigrili e
Cassandra Rios, para discutir um pouco da indiscriminação, da incapacidade
de discriminar valores. Pode ser um vício de professor já mais ou menos velho,
mas continuo achando fundamental isso.
A Escola tem de
ajudar na discriminação, tem de dar elementos para avaliação, mas, mais do que
isso, tem de mostrar ao aluno, passar para ele, que a arte em geral – e a
literatura em particular – é um jogo, que contém elementos lúdicos
fundamentais. Não é possível fazer com que, em qualquer faixa etária, o aluno
leia e possa ler MACHADO DE ASSIS, quando se passa para ele apenas pseudo
filosofante MACHADO DE ASSIS, aquele autor que bancava o sério e era da
Academia Brasileira de Letras. É preciso mostrar-lhe o MACHADO moleque,
brincalhão o tempo todo; aquele que, ao falar de uma moça manca, em Memórias
Póstumas de Brás Cubas, acaba chamando-a de "A Vénus Manca", o
que é de uma crueldade, mas de uma brincadeira extraordinária. É preciso
mostrar o MACHADO que brinca com as palavras, transforma os significastes – e
não apenas transmite significados, muitas vezes absolutamente tediosos. O
ciúme, por exemplo, é um topos literário inteiramente envelhecido. Interessa,
no entanto, o modo pelo qual MACHADO, em Dom Casmurro, foi capaz
de criar Capitu e dizer acerca de seus olhos de ressaca. Este é o escritor,
aquele que trabalha com a linguagem, que estabelece níveis de significastes que
serão importantes depois para se tirarem outros significados – e é isso que vai
determinar a sua perenidade.
A Escola – desde o primário até o último grau
– tem trabalhado muito mal nesse sentido. Isto porque, de um modo geral, ela tem-se
preocupado muito com a passagem desses significados, assumindo uma postura
moralista, positivista, herdeira de uma tradição que não recebeu ainda as
críticas necessárias, visto que estas foram quase todas histéricas e
momentâneas; tais críticas, no caso, deveriam vir de um conhecimento interno
dessa Escola, de sua reformulação real e dos seus princípios. Quando tudo isso
ocorrer, então será possível pensar na literatura como criação, oficina, jogo,
tarefa de realização fundamental do ser humano. Quero encerrar dizendo que, no
que se refere à Escola e àqueles que ela tem formado:
"Ninguém
pode ser matemático, físico, politécnico 24 horas por dia. Ele sonha, imagina,
e, pelo sonho e pela imaginação, passa a arte, passa a literatura, passa a
linguagem da literatura.".
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